Nas ruas, portas de escola, bares, tabacarias e festas, eles deixam uma fumaça branca e densa, com cheiro que nada lembra os cigarros comuns. No boca a boca, recebem diversos nomes, vape e pod são os mais comuns. Com venda proibida no Brasil, especialistas alertam para complicações cardiovasculares e pulmonares dos cigarros eletrônicos. Consumido entre os jovens, podem ser porta de entrada para o tabagismo e colocar em xeque avanços no combate à dependência química da nicotina.
Os dispositivos têm tecnologia simples. Uma bateria permite esquentar o líquido (e-liquid, em inglês) que, em geral, é uma mistura de água, aromatizante alimentar, nicotina, propilenoglicol e glicerina vegetal.
Eles aquecem a nicotina em vez da combustão dos cigarros comuns. Na fumaça do tradicional, há alcatrão, que contém produtos químicos potencialmente cancerígenos, e monóxido de carbono, que aumenta a chance de infarto e dificulta o transporte de oxigênio das células.
O aerossol do dispositivo pode conter substâncias nocivas, alertam os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Destacam também, que é difícil saber quais substâncias o produto contém. Por vezes, no lugar da nicotina, o aparelho é usado para vaporizar outras drogas, como maconha. Alguns, ditos livres de nicotina, apresentaram a substância em análises.
Paulo Corrêa, coordenador da Comissão de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), diz que o eletrônico tem toxicidade aumentada em relação ao cigarro convencional, por causa da forma de produção do aerossol. “Ele tem um filamento, que deve ser aquecido. O filamento é revestido por níquel e outros metais, como latão e cobre. O nível de níquel que tem nos cigarros eletrônicos é de duas a 100 vezes maior do que nos tradicionais. O níquel é considerado cancerígeno”.
No Brasil, ainda em 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a importação, comercialização e propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), que além dos cigarros eletrônicos, incluem os produtos de tabaco aquecido. Atualmente, o processo está em trâmite regulatório. Ou seja, há possibilidade de flexibilização.
A taxa de prevalência, segundo especialistas, não é “confortável”. Eles alertam que os jovens são os principais usuários. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) mostrou que, em 2019, 16,8% dos escolares de 13 a 17 anos já haviam experimentado o cigarro eletrônico. Na faixa de 13 a 15 anos, a prevalência foi de 13,6%. Nos de 16 até 17 anos, de 22,7%.
Mesmo com a proibição, o produto está na mão do brasileiro. Mais de 0,6% da população com 15 anos ou mais já utilizou os aparelhos de nicotina líquida ou tabaco aquecido, de acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde (PNS) de 2019. A taxa variou bastante entre as unidades federativas. Liderando o ranking estão o Distrito Federal (2,2%), Mato Grosso do Sul (2,1%), Paraná (2,1%), Goiás (1,4%) e São Paulo (1,3%).
Em Pinheiros, na zona oeste paulistana, o dispositivo se camufla na mão dos usuários e o aerossol se dissipa com rapidez. Em uma tabacaria, os aparelhos e essências tomam pelo menos quatro longas prateleiras. O preço do dispositivo varia de R$ 60 até R$ 680 – os mais baratos eram descartáveis. Os cartuchos, que iam de R$ 30 até R$ 130, vinham em caixas de cores vibrantes e, alguns, com desenhos de frutas, lembrando embalagens de chiclete infantil.
O vendedor do estabelecimento, que comercializa o produto há três anos, diz que o que faz mal é o uso sem orientação. “Eu não vendo sem dar uma consultoria”. Ele revela comprar o produto no centro de São Paulo, em “lojas grandes”. Neste ano, conta, a Polícia Civil já passou pelo estabelecimento. “Os cara vieram aqui, olharam tudo, falaram que é ilegal, né? Mas nunca vieram fazer a apreensão”.
Conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), estudos que falam sobre o assunto estão incompletos ou são inconclusivos. Especialistas em tratamento do tabagismo não veem sentido no uso terapêutico do aparelho. “O objetivo do tratamento não é fazer a pessoa sair de um aparelho para outro, é se livrar da dependência”, destaca a chefe da coordenação de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (INCA), Liz Almeida.
Julia (nome fictício), de 24 anos, que não quis se identificar, junto a amigos, traz aparelhos do Paraguai para vender em Santa Catarina, onde mora. Ela explica que são pods descartáveis. “Você vai inalar 800 vezes e descartar. Você não recarrega”, diz. Os sabores, destaca, são variados, de abacaxi até tutti-frutti.
Eles compram o produto a R$ 30 e revendem por R$ 60 – bem abaixo do que é cobrado normalmente, segundo ela. “Vende fácil, porque é barato”, afirma. “Anunciamos no Facebook e vendemos para conhecidos no WhatsApp”.
Nas redes sociais, o aparelho aparece na mão de influencers. Há, inclusive, vídeos mostrando como tornar os dispositivos descartáveis, “infinitos”.
Paula (nome fictício), de 18 anos, que também preferiu se manter anônima, também passou a usar o cigarro eletrônico por não ter o cheiro e gosto do convencional. “Uma alternativa mais prazerosa para continuar meu vício com nicotina”.
“Percebi que dava para fumar o pod em qualquer lugar. No carro, dentro de festas. As pessoas não percebiam que tu tava fumando alguma coisa”, conta. “Como é muito fácil de ser ‘ingerido’, tipo no meu quarto deitada, o vício parece que é 30 vezes maior que um cigarro normal”, fala. Quando fumava o comum, destaca, precisava buscar um local específico e mentir aos pais sobre o cheiro que ficava nas roupas.
Efeitos nocivos
Criado no início dos anos 2000, inicialmente desenvolvido fora da indústria do tabaco, foi absorvido por ela por volta de 2015. O discurso das empresas do ramo, principalmente do Japão e Inglaterra, é semelhante ao do vendedor de Pinheiros: um cigarro “limpo” ou de risco reduzido. Também apresentam-no como opção para dependentes de nicotina largarem o vício.
Especialistas, no entanto, alertam que há uma série de riscos associados ao uso do aparelho. Há perigos relacionados à nicotina, e outros específicos da tecnologia. Efeitos a longo-prazo ainda carecem de estudos, por se tratar de uma tecnologia relativamente recente – ainda não completou 20 anos.
Liz aponta que o dispositivo pode ser porta de entrada para o tabagismo, principalmente entre os mais jovens. A chance de um adolescente que experimentou um cigarro eletrônico passar a fumar o tradicional é quatro vezes maior do que aqueles que não, mostrou estudo feito por ela e outros seis pesquisadores.
Com sabor frutado e diversos formatos, alguns simulam batons e “arminhas”, e tamanhos, os dispositivos se tornaram sensação entre os mais novos. Nos Estados Unidos, em 2018, o uso de cigarro eletrônico por adolescentes foi chamado de “epidemia” pelo cirurgião-geral do Serviço de Saúde Pública, Jerome Adams. Em seu alerta, ele destacou que mais de 3,6 milhões de jovens americanos utilizavam o aparelho.
Liz, do Inca, conta que os banheiros e lanchonetes de escolas eram os locais favoritos pelos jovens nos EUA. Os dispositivos ditos de quarta geração (Pod-mods), passavam despercebidos por professores e gestores pois se assemelhavam a pen-drives ou borrachas.
Stella Martins, especialista em dependência química da área de Pneumologia do Programa de Tratamento do Tabagismo do InCor, comenta que os aparelhos de quarta geração, vieram acompanhados do sal de nicotina, que permite consumir mais da substância com facilidade e menos amargor. Um cartucho com esses sais pode conter a mesma quantia de nicotina de uma a até três carteiras do cigarro comum, falam os especialistas.
O impacto da nicotina para um adolescente é muito pior, destaca Stella. “A nicotina vai agir no lóbulo frontal. Esse lóbulo frontal vai interferir na capacidade de discernir entre o certo e o errado, o bom e o ruim”.
O uso pelos jovens coloca em risco o avanço proporcionado por medidas contra o tabagismo das últimas quatro décadas. “Gerações de adolescentes que nunca botaram um cigarro na boca, porque sabem que faz mal, agora, estão caindo na armadilha do cigarro eletrônico porque tem cheirinho e sabor agradável”, lamenta Stella.
A nicotina também pode causar complicações cardiovasculares, como infarto e agressão de vasos sanguíneos (com possibilidade de amputação de órgãos), por exemplo. Além de problemas relativos à fertilidade humana.
Além disso, o uso dos dispositivos pode ocasionar problemas pulmonares. Entre eles, a lesão pulmonar associada ao uso de cigarros eletrônicos (EVALI, na sigla em inglês). Em 2019, o CDC anunciou que os Estados Unidos enfrentavam um surto da complicação. Até 2020, foram registradas mais de 2.800 hospitalizações e 68 mortes por conta da lesão.
Pacientes com a lesão apresentam falta de ar, tosse, dor no peito, febre e calafrios, diarreia, náusea, vômito e dor abdominal, batimento cardíaco acelerado, respiração rápida e superficial. Com sintomas semelhantes à covid, a complicação ficou “eclipsada” nos últimos dois anos.
Tendo em vista o caso americano, a Anvisa criou um formulário para médicos notificarem o atendimento e a evolução clínica de pacientes que tenham desenvolvido a complicação. Entre 2019 e 2020, a agência recebeu sete notificações referentes a doenças relacionadas ao uso de dispositivos eletrônicos para fumar. “Três indicam a ocorrência de internação e duas indicaram a presença de sequelas após a alta do paciente”, destacou, em nota.
A bateria do dispositivo também representa um perigo. Entre janeiro de 2009 e 2016, 195 incidentes de explosão e incêndio envolvendo um cigarro eletrônico foram relatados pela mídia dos EUA, diz relatório da U.S. Fire Administration.
Com perfuração no pulmão, manauara foi parar na UTI
Neste ano, o carnaval de Allan Doug, funcionário de banco, de 30 anos, começou no Rio e terminou em uma unidade de terapia intensiva (UTI), em Manaus. O motivo: perfuração do pulmão devido ao uso excessivo de cigarro eletrônico.
O manauara fumava cigarro tradicional “há algum tempo”, mas só socialmente. Passou a usar o eletrônico, conta, nos últimos cinco meses. “Comecei a usar porque achava bonita a fumaça. Achava aquilo legal.” Utilizava de forma esporádica, em festas. Doug afirma que não costumava tragar, apenas “aspirar”. Também diz que o dispositivo que usava não tinha nicotina.
No Rio durante duas semanas, sem ter de trabalhar, o uso se tornou diário e exagerado. Quando faltavam poucos dias para voltar para casa, no dia 28 de fevereiro, começou a tossir ao final de uma festa. “Comecei também a sentir falta de ar e o meu peito começou a doer muito”, lembra. Por isso, se dirigiu a uma unidade de saúde da capital fluminense. “Lá, só me colocaram no soro e me deram um remédio.” Ele conta que, após o atendimento, passou a se sentir melhor.
De volta a Manaus, na madrugada da quinta-feira, 3 de março, acordou com muita dor no peito. Procurou um hospital privado, onde logo fez um exame de imagem. “No raio-X identificaram umas perfurações e muito líquido (no pulmão)”, afirma. Quando o médico lhe mostrou a diferença entre um pulmão saudável e o dele, Doug ficou em choque. “Fiquei muito assustado”.
Depois do exame, conta, tudo foi muito rápido. Foi logo levado à UTI, onde permaneceu por três dias, para expulsar o líquido do órgão. Precisou ficar internado mais 11, em um leito de enfermaria, em acompanhamento, enquanto fazia tratamento com antibiótico.
Ainda quando internado, postou no Twitter sobre a situação. O tweet recebeu mais de 26 mil compartilhamentos e 100 mil likes. Ele diz querer conscientizar sobre os perigos do uso exagerado do dispositivo, pois “as pessoas estão usando bastante”. “Vai ser a doença do século”.
Atualmente, ele se sente bem e já voltou à rotina normal. No entanto, às vezes, sente uma “dorzinha” no peito. O manauara diz que não ficou com nenhuma sequela visível, mas que, em seis meses, fará mais exames.
Fiscalização
A Anvisa proibiu a importação, comercialização e propaganda dos dispositivos. Em nota, a agência afirmou ser responsável pela fiscalização das vendas on-line. As lojas físicas são de “responsabilidade das autoridades locais”.
O pneumologista Paulo Côrrea, porém, avalia que a agência falha na fiscalização. “Não existe fiscalização. Sem fiscalização e sem educação o que está acontecendo é que o cigarro eletrônico está crescendo”.
A Polícia Militar e a Polícia Civil de São Paulo, em nota, afirmaram que, sempre que solicitado pela Prefeitura, ajudam em ações para coibir o comércio ambulante irregular e combater a pirataria. No final do ano passado, policiais civis, em parceria com a Receita Federal e a administração municipal, deflagraram a Operação Atmos, na qual apreenderam 135 mil cigarros eletrônicos e 325 mil essências.
Nas discussões, que começaram em 2017, as empresas Souza Cruz (BAT Brasil), Philip Morris Brasil e Japan Tobacco International (JTI) se mostraram favoráveis à flexibilização da comercialização dos dispositivos eletrônicos de fumar. Em suas apresentações, apontam o produto como de risco reduzido.
A JTI disse, em nota, que “hoje o uso desses produtos já é corrente, abastecido por produtos de origem 100% ilegal, sem qualquer controle sanitário”. “Apenas a indústria formal não tem permissão de importar e comercializar já que se mantém obediente à legislação vigente.”
A BAT Brasil disse defender uma “regulamentação robusta, responsável e equilibrada”. “No Brasil, já existe um crescente mercado de consumidores de cigarros eletrônicos, estimado em mais de 2 milhões de pessoas. No entanto, 100% desse mercado é ilegal”, destacou, em nota.
A Philip Morris Brasil destacou que cabe à Anvisa decidir sobre a comercialização autorizada, mas disse que apresentou estudos e pesquisas científicas sobre seu produto de tabaco aquecido à agência. “Os documentos estabelecem uma diferença entre esse dispositivo e os cigarros eletrônicos que são comercializados ilegalmente no Brasil. Além disso, mostram que a ausência de combustão e fumaça reduz a quantidade de compostos tóxicos, na comparação com o cigarro”, declararam em nota. O produto já é vendido em 71 mercados ao redor do mundo.
Profissionais da área da saúde apontam que a revogação do veto representaria um retrocesso. “Seria uma vergonha internacional para o Brasil, que é reconhecido internacionalmente como um país desenvolvido em políticas contra o tabagismo, que houvesse essa flexibilização”, avalia Stella.
“A população que nunca fumou vai falar: ‘Se a Anvisa regulou, vou fumar, porque é gostoso, é cheiroso, é agradável e me dá prazer. Aquele que não quer parar de fumar, que está postergando, vai migrar, porque “se a Anvisa disse, então esse não faz tanto mal à saúde’. Aquele que parou e sente saudade vai voltar ‘porque a Anvisa falou, então ok’”, explica.
Fonte: Política Livre